A esquerda no poder: o caso finlandês

Antes de passar ao corpo principal deste texto, impõe-se uma nota introdutória: “esquerda” ou “direita” são conceitos relativos, pelo que o seu uso surge sempre condicionado pelo sujeito que os manuseia. Neste texto, assim como noutros anteriores e ainda alguns que certamente virão, quando falo em “esquerda” refiro-me sempre aos quadrantes políticos à esquerda da “social-democracia” da Internacional Socialista, representada em Portugal pelo PS e na Finlândia pelo Partido Social-Democrata (SDP). A bem dizer, categorizar como social-democrata um partido como o PS ou, para dar outro exemplo, o MPLA de Angola, é, no mínimo, puxado. Na minha opinião, prefiro a designação social-liberal ou, tão simplesmente, liberal.

Na Finlândia, a esquerda do espectro parlamentar é ocupada pela Aliança de Esquerda, formação partidária que pode encontrar no BE o seu congénere português. Todos os partidos representados no parlamento, excepto os Verdadeiros Finlandeses e o Partido do Centro (a terceira e quarta força partidária, respectivamente), fazem parte da coligação que governa o país, cuja força dominante é a Coligação Nacional, partido conservador que obteve a maior parcela de votos nas últimas eleições legislativas e que viu o seu candidato, Sauli Niinistö, ser eleito presidente da república, há poucos dias.

Sem querer entrar num escrutínio pormenorizado da composição do parlamento finlandês nem das negociações que conduziram à formação desta coligação governamental que, pelo menos aparentemente, poderia apresentar alguma predisposição para a esquizofrenia (visto que engloba todos os partidos, exceptuando os já mencionados, desde os cristãos-democratas até à Aliança de Esquerda, passando pelos verdes e o Partido do Povo Sueco), gostava de me centrar no caso da Aliança de Esquerda, posto que se trata de um partido que, à semelhança de muitos outros por esta Europa, se diz “anti-capitalista” e portador de um projecto político alternativo ao neoliberalismo.

Comecemos por uma clarificação. Apesar de estarmos na Escandinávia, o “paraíso social-democrata”, o discurso do poder é o mesmo: austeridade, austeridade, austeridade. Óbvio que há nuances, se compararmos a Finlândia com as realidades do sul ou do leste da Europa, na medida em que não estamos num país semi-colonizado e a acumulação de capital por parte da elite (ainda) permite a manutenção de um estado-providência e de salários relativamente altos, algo que serve de factor atenuante dos conflitos sociais. No entanto, sente-se já a inversão desta tendência, que fique bem claro. Mas isso são contas de outro rosário…

A questão é: como sobrevive um partido da esquerda “anti-capitalista” num governo de hegemonia conservadora/liberal cujo principal ponto programático é cortar gastos públicos? O principal argumento a favor da integração da esquerda neste governo é o habitual: o da colaboração “construtiva”ou “crítica”, uma participação que pode servir de contrapeso ao programa conservador e liberal dos seus parceiros governamentais. A conversa é velha e recordo-me imediatamente do infeliz caso da Refundação Comunista italiana, que, fazendo uso do mesmo jargão conciliador, participou num governo social-liberal, marcando o óbito da Refundação como hipotética alternativa política contra o neoliberalismo.

Na Finlândia, por muito díspar que seja o contexto sócio-económico, o caso da Aliança de Esquerda não é assim tão diferente do supra mencionado. O partido tomou controlo de dois ministérios: o dos Transportes e o da Cultura. Este último gabinete ministerial ficou sob a alçada de Paavo Arhinmäki, o recente candidato presidencial e líder do partido esquerdista. Poucos meses depois de tomar posse, logo aquando do debate do orçamento, ficou claro que a palavra de ordem do novo governo era similar à de outros executivos neoliberais: cortar, cortar, cortar. Ora, o ministério do douto Arhinmäki não foi excepção.

Em Setembro, logo que começaram a surgir críticas ao facto de que os ministérios entregues à Aliança de Esquerda não iriam ser imunes aos cortes orçamentais, não obstante a retórica anti-neoliberal que pontua o discurso do partido, escrevia o “anti-capitalista” Arhinmäki na sua página oficial que as coisas não eram assim tão más. Afinal, a tendência nos últimos anos, no sector cultural, era de cortes na ordem dos 80% e, agora que ele dirigia o Ministério da Cultura, a coisa iria ficar por muito menos.

Pois está claro, é o velho argumento da esquerda comprometida com a elite económica: “Já viste, pá, comigo no poder a burguesia atropela-te com um camião, caso eu não pactuasse com ela, serias atropelado por um comboio!” Empregando uma certeira metáfora de José Mário Branco, o senhor Arhinmäki salvou um remêndo e uma côdea, para que o casaco e a carcaça ficasse nas mãos dos de sempre!

Mas agora as coisas ficam mais claras… Neste momento, não estamos somente a falar de números, pois podemos já testemunhar o efeito do orçamento para o sector da cultura na realidade social. Vamos a factos: graças a cortes que atingem a cifra de 3 milhões de euros, a Agência dos Museus decidiu o encerramento de 8 museus, motivando o despedimento de 40 pessoas, algo que já provocou protestos na capital do país. É esta a política da esquerda para a cultura?

E onde fica a alternativa ao neoliberalismo? Como pode a Aliança de Esquerda reivindicar-se como alternativa, quando não só participa em governos  conservadores e neoliberais, mas inclusivamente compactua activamente com o programa austeritário? Um governo que promove cortes orçamentais não só no seu país, mas também apoia o mais recente “resgate” grego, que é, nem mais nem menos, a devastação da economia do país helénico, para “resgatar” os usurários germânicos! Gostava sinceramente de ver Arhinmäki e companhia explicar aos trabalhadores gregos a cooperação “construtiva” que ele lidera, num governo que apoia o saque generalizado ao país do Egeu. Enfim, estranho “anti-capitalismo”, este dos auto-proclamados “partidos anti-capitalistas” que brotaram por esta Europa desde há uns anos…

Este triste cenário completa-se com uma constatação: a oposição parlamentar ao governo finlandês resume-se, por conseguinte, à extrema-direita populista dos Verdadeiros Finlandeses e ao Partido do Centro, herdeiro do antigo Partido Agrário. Tudo graças à política de conciliação de sociais-democratas e esquerdistas. Um quadro bastante deprimente, diga-se… Não é à toa que partidos cripto-fascistas, como os Verdadeiros Finlandeses, não só beneficiem de abonadas votações nas eleições legislativas, mas comecem já a tentar implantar-se nos sindicatos, como acontece, por exemplo, no sector dos metalúrgicos.

Felizmente, o campo do possível não termina com os Arhinmäki’s deste mundo e a alternativa socialista deve ser implementada o mais rápido possível, seja na Finlândia, na Grécia ou em Portugal!

Enfim, para culminar este (talvez demasiado) longo texto, fica o contributo intemporal de José Mário Branco, que, em meia dúzia de linhas e outras tantas notas, desmascarou o programa da social-democracia (vista ela a roupagem “socialista” ou “anti-capitalista”) e expõe sucintamente o que deve ser o programa de um verdadeiro partido anti-capitalista, um partido socialista merecedor dessa designação.

2 comentários a “A esquerda no poder: o caso finlandês

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